Dirigido e roteirizado por Leo Bello, Cartório das Almas é um filme distópico - uma obra cinematográfica ambientada em uma distopia, ou seja, um cenário fictício em que a sociedade apresenta características negativas extremas. Esses filmes geralmente exploram mundos futuristas, alternativos ou pós-apocalípticos onde há opressão, desigualdade, perda de liberdade, ou outras condições desumanas que refletem problemas sociais, políticos ou tecnológicos levados ao extremo. Filme introspectivo e experimental de ficção científica, a obra mergulha em questões profundas sobre a existência e a mortalidade.
A trama gira em torno de Laura (Gabriela Correa), uma jovem de 126 anos que consegue um novo emprego: trabalhar no Cartório das Almas. Sua função é burocrática e peculiar – registrar os motivos que levam as pessoas a renunciarem à imortalidade, ou seja, escolherem morrer. Entretanto, há uma regra intransigente: é proibido tentar dissuadir os clientes. No máximo, pode-se sugerir que reconsiderem a decisão em casa, com a família.
Ao longo de seu trabalho no cartório, Laura começa a confrontar sua própria existência. Ela não se lembra bem de seu passado desde que foi condenada à eternidade e, ao contrário das outras pessoas, não tem o direito de optar pela morte.
O processo da eternidade neste universo é peculiar: aqueles que desejam permanecer imortais entram em uma banheira cheia de um líquido branco. Após submergirem, emergem sem o peso do tempo, mas também sem as memórias que tinham antes do banho. Já aqueles que abdicam da imortalidade devem justificar sua escolha por escrito, assinar e, em seguida, entrar em um compartimento semelhante a um armário, de onde saem transmutados em pássaros pretos.
O pássaro preto é o maior símbolo imagético do filme – um totem da liberdade, do mistério e da transcendência. Esse simbolismo permeia toda a narrativa, sustentando a densidade poética da obra.
A fotografia, assinada por Pedro Maffei, é bela e sombria, com uma paleta de cores frias que quase se aproxima do preto e branco. Essa escolha reforça o tom introspectivo do filme, investindo em planos expressivos e detalhistas. Elementos da natureza, como formigas, pássaros e árvores, contrastam com a aridez do ambiente artificial. Essa composição visual também reflete o isolamento de Laura, com planos gerais que evidenciam sua pequenez e solidão em meio ao campo aberto deserto.
A direção de arte e a direção de fotografia são fundamentais para criarem a atemporalidade do longa, situando a história em um "não lugar" e um "não tempo". O design mescla sensorialidade, memória e inconsciente, explorando diversas camadas da psique humana. A paleta de cores restrita transmite a frieza das relações entre eternidade, vida e morte, criando uma experiência estética que busca a estesia. O figurino de Laura reflete sua ambiguidade: peças desconstruídas, com mangas rasgadas, simbolizando sua luta entre partir e permanecer.
Com um ritmo deliberadamente lento, o filme constrói uma atmosfera calma e contemplativa, ideal para a ausência de grandes acontecimentos ou reviravoltas que caracterizam o enredo, tirando o seu final - já volto a falar sobre ele. Muitos planos são longos e os enquadramentos amplos, exibindo o céu e paisagens vastas, com diálogos escassos que reforçam a introspecção. O contraste das locações também contribui para a narrativa: o minimalismo urbano e modernista de Brasília, com suas linhas arquitetônicas futuristas, contrapõe-se à natureza precária e viva do Cerrado, onde se localiza o Cartório das Almas – uma estrutura simples no meio de uma plantação de soja.
A estética do filme me lembra inclusive o filme Cisne Negro, do Darren Aronofsky, principalmente nas cenas em que penas de pássaro preto saem do braço de Laura, usando o body horror - um subgênero do terror que explora o medo e o desconforto relacionados a mudanças, mutilações ou deformações físicas do corpo humano. Essas transformações geralmente são grotescas, perturbadoras ou antinaturais, provocando repulsa e desconforto no espectador ao desafiar os limites do que é considerado normal ou aceitável em termos de corpo e anatomia -; e a série Sandman, da Netflix. Se ainda não assistiu a alguma dessas obras, vale a pena.
A performance de Gabriela Correa é minimalista e poderosa, focada em gestos sutis e olhares que transmitem as dúvidas e incertezas de sua personagem. Laura passa por uma jornada de autodescoberta enquanto tenta resgatar fragmentos de seu passado, principalmente através de fotografias. Sua rotina monótona e eterna é palco de reflexões profundas sobre liberdade, identidade e o peso do tempo.
O filme ganha um ponto de virada (plot point) surpreendente no final, quando revela que toda a história ocorre na mente de Laura. Na realidade, ela está em uma clínica de suicídio assistido. Este plot me lembrou o filme Sucker Punch – Mundo Surreal, de Zack Snyder, em que na verdade as protagonistas estavam o tempo todo em um sanatório, e não nas aventuras que vemos em tela. Este desfecho subverte o ritmo contemplativo e introspectivo que marcou a narrativa, trazendo uma reviravolta significativa - apesar de que pra mim não foi surpresa.
Cartório das Almas, sendo um filme sobre a morte, reflete sobre a vida. Ele nos desafia com perguntas incômodas: qual é o sentido de viver a qualquer custo, quando a existência já não possui significado? Com sua riqueza temática e impacto visual, o filme transcende gêneros, oferecendo uma experiência poética, sensorial e profundamente reflexiva.
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